Já é tarde demais. Eles querem vingança. Não tenho escolha senão fugir.
Eu sabia que tinha de correr. E depressa. Não paro de me recordar das aulas de educação física, e de como o professor nos admoestava sobre a importância de correr e de ter uma boa resistência.
Bela merda. De que é que isso me serve agora?
Sinto os meus pulmões prestes a explodir. Inalo o máximo de ar que consigo e expiro-o devagar. Mas as minhas pernas começam a fraquejar. O que é que eu faço?
Posso-me esconder. Mas será que, se eu parar, eles vão ouvir a minha respiração pesada? Talvez até vê-la, neste ar gélido?
As carumas estalam sob os meus pés. Escorrego numa fina camada de geada que cobre as folhas.
Não, não, não.
Não posso cair.
Não agora que recuperei algo que me pertence.
Recupero o equilíbrio. A minha boca está seca, e sinto as minhas mãos inflexíveis, prontas a ficar cerradas em punhos, por causa do frio.
As lanternas localizam os meus passos apressados. Os gritos deles ecoam pela floresta, aterradores – como o estalar da madeira num incêndio. Este é o momento mais assustador que já vivi.
Eles sabem o que eu fiz.
Não pensei encontrar tantos seguranças naquela casa. Contava com alguns, mas não tantos. Pelo menos, consegui recuperar este álbum de fotografias, que é meu por direito.
Mas eles não compreendem isso. Preferem acreditar na mentira que têm andado a viver.
Eu não me contento. Eu sei quem sou. Mesmo que eles o queiram continuar a negar.
Já não aguento mais. Os meus pulmões estão exaustos, os meus músculos ardem, prontos a trair-me. O frio entranha-se nos meus ossos apesar do suor que me cai da testa. Sinto que estou num banho de gelo abrasador.
Os meus pés afastam-se do chão. De olhos arregalados, fito-os, sem saber o que está a acontecer.
Estou a levitar?
Estou a voar?
Mas como é que isso é possível?
Olho para baixo, com o coração galopante, e vejo as copas dos pinheiros. As lanternas que me perseguiam são distantes riachos de luz, e os gritos apenas ecos que se espraiam pela noite.
Estou a salvo. Eles já não vêm atrás de mim.
Respiro fundo. Continuo a voar, para bem longe deles.
Porém, o frio começa a envolver-me, como um tufão. Sinto-me a rodopiar num mar de correntes. As picadas gélidas sacrificam-me a uma agonia crepitante.
Mas porque é que não paro de subir? O que é que está a acontecer?! Porque é que eu não consigo controlar para onde vou?
Inspiro o máximo de ar possível, mas este começa a rarear. Expiro e volto a inspirar, o movimento tão doloroso que me esmaga os pulmões.
Não sei se consigo aguentar mais. O sufoco é martirizante. O frio apodera-se de mim, roubando-me a oportunidade de o combater.
Já nem o abraço me salva.
Já não há nada que possa fazer.
Solto o meu último suspiro.
* * *
— Rita, tenha calma. — diz um homem que enverga uma bata azul. Ele deve ter cerca de trinta e cinco anos. Segura os meus braços com firmeza — Está tudo bem.
Olho para ele. Algo não está bem. As lágrimas afluem aos meus olhos e eu sinto o meu coração disparar no meu peito.
Sinto-me… presa.
Olho para baixo. O choque avassala-me. Solto um grito gutural, que sai das profundezas da minha garganta.
Mais pessoas de bata azul, que eu julgo serem enfermeiros, correm na minha direção. Não, não pode ser.
Eu não posso estar aqui. Não neste sítio.
— Rita, por favor, tenha calma. — diz uma mulher, mas eu mal a escuto. Eles não podem fazer isto.
Não, não, por favor, não. Como é que eles foram capaz de me meter num colete de forças? Eu não sou nenhuma aberração!
O pânico toma conta de mim. Não consigo parar de gritar e, de cada vez que me tocam, só quero fugir. Mas não consigo.
Dois enfermeiros pegam em mim. Estão a levar-me para algum sítio. Quero espernear-me, mas os meus músculos estão presos. Eles não respondem como eu quero.
Será que… será que me deram um tranquilizante?!
— Não! Não, por favor! — grito, quando dois enfermeiros entram comigo numa sala cúbica, com paredes almofadadas de um turquesa brilhante.
— Rita, vai ficar tudo bem. — diz o primeiro enfermeiro que conheci, num tom contundente — Só vai ficar aqui até se acalmar.
Eles afastam-se. Eu levanto-me para ir atrás deles e sair dali para fora, mas as minhas pernas fraquejam. Aterro no chão, também ele almofadado, e recrimino-me por isso.
Não me consigo mexer. Grito o mais alto que consigo, mas o som da minha própria voz fica confinado àquela sala assim que eles fecham e trancam aquela porta.
As lágrimas saltam-me dos olhos. Tenho medo. Estou aqui injustamente. Eu sei quem sou. Eu sei quem sou!
Podem escondê-lo o quanto quiserem, mas eu sei que sou filha dos Monte-real. Não sou apenas uma criatura que eles abandonaram na noite de 11 de Fevereiro de 1991. Todas as respostas estavam naquele álbum. Eu sei que eles esconderam as minhas fotografias lá!
Todos estes anos, cresci num orfanato, e venho a descobrir que os meus pais estavam vivos e me abandonaram de propósito.
Desde então que quero saber a verdade. Tenho esse direito. Não tenho?
Revivo os momentos anteriores – aquela fuga aconteceu. Não aconteceu? Os guardas vinham atrás de mim, com as lanternas apontadas para onde eu fugia. Gritavam e tentavam alcançar-me, mas eu sou ágil.
Fito um quadrado almofadado diante de mim, e reparo que deixei cair um fio de baba sobre ele. Soergo-me com dificuldade, sem o apoio dos braços, e olho para mim. Sou acometida por uma tristeza profunda, ao aperceber-me da realidade que encaro.
Será que imaginei tudo? Quero dizer, eu estou num colete de forças… então, será que estive sempre neste sítio?
Não. Foram eles que me puseram aqui. Eu sei quem sou. Eu não me esqueço.
Tenho de sair daqui. Eu posso. Eu consigo. Não consigo?
Elisabete Martins de Oliveira
23.10.2020