Deu-me uma bússola e um mapa. E agora, o que é que eu faço com isto?
Folheio as páginas do diário que a minha tia-avó me deixou. A sua vida foi um autêntico enigma. Ela mimava-me com os seus abraços apertados e beijos carinhosos. Tratava-me como sua neta. Passávamos tardes inteiras a conversar, sentadas numa cadeira-baloiço.
Mas sinto que não a conhecia.
Pelo menos, é o que constato neste diário. Ela escreve aspetos tão íntimos da sua vida que o meu coração se afunda em dó e saudade. Como eu gostava que ela me tivesse contado isto em primeira mão!
Quando tinha três anos, viu o seu tio a matar um porco à machadada, recordação que a marcou para a vida toda. Aos dez, conta como a sua mãe batia no seu pai, a terna figura da sua infância, que morreu precocemente, com trinta e três anos. Aos quinze, um rapaz da sua escola tentou violá-la, mas ela escapuliu-se pelo bosque, tendo aterrado numa poça de lama traiçoeira, escondida pelas carumas. Durante a sua vida adulta, trabalhou numa fábrica de têxteis, onde era constantemente assediada pelo chefe.
A minha tia-avó nunca casou. Relata no diário como a minha avó troçava dela, dizendo que ia morrer para tia. Abano a cabeça, incrédula com a reação da avó. Não sabia ela que a sua própria irmã tinha sofrido tantos traumas no decurso da vida?
Continuo a ler. A minha tia-avó faz umas descrições estranhas acerca de uns pirilampos que resguardam um lugar, de nome Constelação. Franzo o sobrolho e olho para o mapa que me deixou. É exatamente o mesmo lugar. Leio mais sobre ele.
19 de Janeiro de 1952
Já escondi o tesouro no bosque. Enterrei-o. Espero que ninguém o encontre. Em minha casa, os esconderijos são inexistentes, e ai de mim se esconder seja o que for. Conheço a mão pesada de minha mãe.
Embrenho-me na leitura como se estivesse a ler um romance. Não consigo largar o diário mesmo que tente. Tenho de resolver o mistério que a tia-avó Alice me deixou. A carta dizia-me para ler o seu diário, pois iria encontrar todas as respostas.
As páginas fogem-me dos dedos, sob o meu olhar atento, e, quando dou por mim, avanço até à semana anterior à sua morte. As minhas pálpebras já pesam, e sinto-me dominada por uma sensação de calor que me deixa entorpecida. No entanto, ao ler isto, arregalo os olhos.
15 de Fevereiro de 2020
Matilde, vai até ao bosque com a clareira, e desenterra o tesouro que lá enterrei há sessenta e oito anos. Liberta-me. Não me esqueças, minha filha.
Seguro no mapa e na bússola. De um salto, levanto-me da cadeira. O ar húmido e frio de fevereiro atravessa as várias camadas de roupa que envergo e rói-me, qual manta gélida.
São seis da tarde, mas o céu está tão escuro como se fosse meia-noite. Percorro o bosque, cada passo acelera ainda mais o batimento frenético do meu coração.
O estalar de um ramo ecoa pelo manto de pinheiros.
Um calafrio sobe-me pela espinha. Olho, atenta, para o ambiente que me rodeia. A densidade da escuridão adivinha sempre algo de mal.
Mas terá de ser sempre assim?
Ouço ecos de vozes longínquas. Engulo em seco. Perscruto o espaço sem piedade, mas nada encontro.
O medo é para fracos, menina. Se os teus pais não te ensinaram isso, digo-to eu!
Isto era o que tia-avó Alice me costumava dizer. Respiro fundo. Estou a fazer isto por ela. Este é o seu último desejo.
A escuridão dissipa-se e permite um vislumbre do luar, que penetra por entre as copas das árvores. Aproximo-me, a passos cuidadosos, daquela que julgo ser a clareira que ela referiu. Olho em volta e, perante o luar, intenso como a lava na negrura, leio o mapa.
O tesouro encontra-se a cento e quinze metros à direita do pedregulho com pinturas rupestres. Levanto a cabeça e identifico-o de imediato. Aproximo-me dele e percorro com os meus dedos as marcas lapidadas dos desenhos, ásperas e densas.
Percorro o caminho, que começa novamente a escurecer. Olho para trás, buscando conforto na claridade do luar.
Os ecos das vozes regressam.
Escondo-me detrás do tronco de um pinheiro, com o coração galopante. As vozes transformam-se em gritos e sons agudos, como os de uma raposa.
Não posso ficar aqui.
Tu consegues, Matilde. Pela tia-avó Alice. Pela tia-avó Alice.
Com o fôlego controlado, caminho o mais silenciosamente que consigo. As vozes elevam-se na escuridão. A minha mão trémula segura no mapa.
Arregalo os olhos. O meu coração para.
Vejo um grupo de rapazes adolescentes, com tacos de basebol e troncos com um metro de comprimento, tentarem acertar em fadas, que se movem numa aflição delirante, mas sempre concentradas no mesmo lugar.
Encontrarás as guardiãs do meu tesouro, as fadas da tribo.
As minhas mãos suam. Não me quero aproximar deles. Porém, também não posso permitir que destruam o legado da tia-avó Alice. Percorro o chão com o olhar e encontro um tronco médio, partido, afiado.
É agora ou nunca.
Respiro fundo e avanço na sua direção.
— Hey! — grito — Saiam daqui!
Gargalhadas. Risos maldosos, de desdém. A raiva percorre as minhas veias. Começo a brandir o tronco na escuridão, o som da deslocação do ar chega aos meus ouvidos, ameaçador.
Não sei o que estou a fazer.
Um gemido de dor ecoa pelo bosque, e eu continuo a mover o tronco. Os rapazes tentam defender-se, batendo no meu. As fadas guardiãs ajudam-me, incansáveis.
Doem-me os braços. Já não consigo mais. Os rapazes aproximam-se de mim.
Corro dali para fora.
Uma luz surge. Magna, intensa, que tudo eclipsa. No escuro, resto eu, as fadas, e uma caixa misteriosa que se abre e emana um emaranhado de fios de memórias, como um rolo de filme antigo.
Observo este fenómeno, os meus olhos exaustos e sedentos de curiosidade. Começo a levitar, e sinto uma pressão sufocante, como se estivesse num concerto. Os fios de memórias enrolam-se em mim. Fundem-se em mim. Sou invadida pelas recordações de toda uma vida. De toda uma era. De repente, tudo faz sentido.
Eu já protegi as memórias dos meus contemporâneos. Agora, Matilde, é a tua vez.
Elisabete Martins de Oliveira
30.10.2020
Olá, Isabel,
Muito obrigada pelo seu feedback! Fico muito feliz que tenha gostado! 😀
Um grande beijinho!
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Olá, Daniela,
Muito obrigada! O teu feedback é precioso, fico genuinamente feliz que gostes dos meus contos. Eu tento fazer melhor a cada tentativa. Gosto desse desafio! 😉
Obrigada e um grande beijinho!
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Excelente, adoro a tua escrita, é empolgante! Parabéns!!! Beijinhos
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Cada um dos teus contos é melhor que o anterior! Gostei muito de ir em busca de um novo tesouro. Também só consegui parar de ler no final! 🙂
Parabéns!
Beijinho,
Daniela
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