Já é tarde demais. Eles querem vingança. Não tenho escolha senão fugir.
Acabei de assinar a minha sentença de morte. Aqueles agiotas gananciosos não descansam enquanto não lhes pagar o dinheiro todo que lhes devo… Mas quem me mandou ser tão estúpido e idiota, e pedir dinheiro emprestado a estes tipos?
Este investimento tinha tudo para correr bem: ia abrir o negócio dos meus sonhos, pagar as minhas dívidas, fazer a minha família feliz e, acima de tudo, livrar-me destes tipos.
Já estava tudo tratado: o espaço para o meu restaurante gourmet, os melhores equipamentos do mercado, uma equipa de luxo a trabalhar comigo, e um dos chefs mais conceituados do país que aceitara juntar-se ao meu projeto.
A grande inauguração ia ser no dia 1 de maio, tenho a certeza de que íamos ter casa cheia. A minha mulher Margarida estava tão ou mais entusiasmada do que eu, até os meus filhos (o Mauro e a Beatriz) queriam estar presentes para ajudar. Mas depois chegou este vírus, e trouxe consigo o caos a nível mundial que deixou as nossas vidas, projetos e sonhos em suspenso, sabe-se lá por quanto tempo.
Com o adiamento indeterminado da abertura do meu restaurante começaram os problemas a surgir e a dívida a aumentar. Cancelei os contratos do pessoal; os equipamentos e o espaço foram pagos a pronto, o investimento sem retorno, e os agiotas à perna sem um pingo de misericórdia de mim. Já me deram um valente aperto, mas não tenho como lhes pagar. Estou a entrar em desespero. A Margarida já percebeu que algo se passa, ando mais nervoso, calado, ausente, não lhe quero dizer que é por causa do dinheiro pois ela pensa que foi um empréstimo, nunca me iria perdoar.
Hoje quando saí para comprar pão vi um bilhete no para-brisas do carro da Margarida, era deles, entrei em pânico, “Se queres que nada aconteça à tua linda mulher e aos teus filhos é bom que comeces a pagar o que nos deves”. E agora? Conto a verdade e vou à polícia? Fujo? Não, não posso fugir. Não posso abandonar a minha família.
— Margarida, preciso de falar contigo… — Eu suava por todos os lados, não sabia como começar esta conversa que podia ser o fim da minha vida e do nosso casamento.
— Sim querido, vou já.
Uma hora depois já lhe tinha contado tudo, ela chorava de raiva e tristeza, mas levantou a cabeça, olhou-me nos olhos e disse-me:
— Vamos ultrapassar isto juntos, David.
Uma semana depois de recebermos o primeiro bilhete pedimos ao Mauro para ir buscar a irmã à escola, para podermos falar à vontade sobre o que iriamos fazer, ele não desconfiou. Eram 18h e era suposto os miúdos já terem chegado, mas era sexta-feira, há mais pessoas na estrada, mais trânsito, desvalorizámos o atraso. Começámos a preparar o jantar.
Tocaram à campainha, fui abrir. O Mauro estava aninhado no tapete da entrada, cheio de dores e a chorar, chamei a Margarida aos berros, perguntei pela Bia. “Levaram-na”, foi tudo o que conseguiu dizer, e deu-nos um bilhete. “Nós avisamos que não estávamos a brincar! Tens 48h para devolveres o nosso dinheiro ou nunca mais vês a tua filha. Não envolvas a polícia”.
Fiquei branco como a cal, a Margarida só chorava enquanto tratava dos ferimentos do nosso filho. Os olhos dele transpareciam culpa e pânico por não ter conseguido proteger a irmã.
Sem conseguirmos pregar olho a noite toda, ligámos para alguns familiares e amigos que sabíamos que nos iriam ajudar com o dinheiro. Em menos de 12h conseguimos reunir os 200.000€ que estou a dever àqueles monstros capazes de fazer mal a crianças indefesas. Liguei para o único contacto que tenho deles. Atendem ao terceiro toque, digo que já tenho o dinheiro deles e que quero a minha filha de volta sã e salva. Combinamos o local do encontro, um jardim pouco frequentado e com um aspeto abandonado. Não fui sozinho, o meu irmão veio comigo, só ele emprestou-me mais de metade do dinheiro, vou ficar-lhe agradecido para o resto da vida.
Quando chegámos vimos um carro ao longe, suspeitámos que fossem eles, e tínhamos razão. Assim que me viram, um deles saiu do carro sozinho e veio ao meu encontro.
Trazia uma arma na cintura, confesso que comecei a temer pela minha vida. Disse-lhe que só entregaria o dinheiro quando tivesse a minha Beatriz comigo, e abri a mala para lhes mostrar o dinheiro.
A miúda saiu do carro, com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar, amordaçada e com os punhos presos com uma corda. Veio a correr na minha direção, eu larguei a mala e agarrei-a com todas as minhas forças e, no preciso momento em que o Yuri pega na mala, ouvimos as sirenes, era a polícia.
Ficaram vermelhos de raiva. O Yuri foge para o carro, alguém lá dentro liga o motor e nós fugimos para o nosso. Ouvimos um estrondo, e eu caio, as dores eram tantas que nem conseguia gritar. Levei um tiro na perna do tipo a quem devia dinheiro, era a vingança por ter envolvido a polícia, não sabia da Bia nem do meu irmão, tive medo que também tivessem sido atingidos, e depois apaguei, fiquei inconsciente.
Acordei umas horas depois numa cama de hospital com a minha família a meu lado, contaram-me o que se tinha passado. Levei o tiro e nesse momento o meu irmão pegou na Bia para a proteger, a polícia apareceu e conseguiu recuperar a mala com o dinheiro, e abateram o Yuri e mais um capanga, quem disparou sobre mim conseguiu fugir, mas como a polícia fez bloqueios nas ruas circundantes, conseguiriam apanhá-los a todos.
Tenho a minha família a salvo, devolvi o dinheiro a quem mo emprestou, explicando o sucedido, prestei declarações às autoridades, agora só tenho de recuperar para em breve abrir o meu restaurante e dar asas ao meu sonho.
23.10.2020